Em tempos de hiperzelo, a expressão ‘fulano trata seus filhos como se fossem cachorros’ tem novo sentido

É tudo culpa do Freud. Antes dele, crianças eram propriedades dos pais: podiam matá-las, vendê-las, o que fosse, mas a última coisa que sentiriam seria culpa em relação a elas. Para ser mais preciso, as primeiras leis de proteção à infância só surgiram na Revolução Industrial, quando elas se tornaram parte da força de trabalho.

Mas Freud veio dizer que nossos problemas vêm da criação, que pais desatentos causam trauma, e tudo mudou: antigas crianças que haviam culpado seus pais por suas desditas tornaram-se pais, elas mesmas, e começaram a olhar seus filhos tomados pela síndrome de Orloff (“Eu sou você, amanhã”; “Ai, meu Deus, essa criança vai me apontar como causa de seus males”). Estava inaugurada a culpa na criação dos filhos.

Você pode argumentar que esse zelo pelos pequenos foi um avanço inestimável para a humanidade. Sim, eu concordo, mas falo aqui de um efeito colateral muito danoso: a formação reativa de pais exageradamente interferentes na vida dos filhos, fazendo de tudo por eles, sentindo-se obrigados a entretê-los, como se criança não soubesse brincar sozinha, como se eles não tivessem vida própria.

Sei bem a sorte que dei de ser sexto filho entre sete: recebi o dom da invisibilidade. Como ninguém me notava, pude brincar sozinho, inventar minha vida, e veja o resultado desse “horror”: comecei a ler livros na infância e não parei mais (criança viciada em companhia não se tornará leitora).

As pobres mulheres, então, que começaram a trabalhar fora, essas são as mais culpadas: voltam penitentes para casa e cumprem o tal do “quality time”, uma “forçação” de barra insuportável em que inundam o filho de uma atenção desmedida, de brinquedos, de roupinhas e tudo mais. Você foi a uma festa infantil recentemente? Estão superando o bar-mitzvá como show de desperdício de dinheiro, tudo para dizer “Olha como eu amo meu filho”.

Criança, você sabe, é uma peste com uma antena parabólica para detectar culpa de adulto, coisa que passa a usar como controle: a mãe se torna seu videogame.

Foi assim que a praga das crianças mimadas começou a se alastrar. Nos Estados Unidos, elas não são mais chamadas de “spoiled” (estragadas), e sim de “entitled” (que têm direito a tudo). Os pais introduzem assim, em suas casas, o embrião do Estado-babá: basta nascer para ter todos os direitos e nenhum dever. Olha a bagunça que isso está dando!

E os cães? Com essa idealização do que deve ser a “infância feliz”, as pessoas estenderam a seus animais de estimação o mesmo hiperzelo: também se sentem na obrigação de entretê-los e mimá-los. Pelo visto, pet shop será o único comércio a escapar da crise.

Não tenho nenhum problema com essas manifestações de amor animal, inclusive admiro um amigo que, assumidamente, chama seu cão de “Patrãozinho”. A expressão “fulano trata seus filhos como se fossem cachorros” passa a ter novo sentido…

Mas, aí sim, há problemas: enquanto os cães permanecerão propriedade (ou proprietários) de seus donos, as crianças não. Elas precisam aprender autonomia. Caso contrário, filhos não se parecerão mais com cães, e sim com gatos gordos.

Texto de Francisco Daudt
Image: Pexels