Escrevo especialmente aos pais de crianças com Síndrome de Down, mas também a todos quantos lerem essa carta.
Foi com alegria que recebi o pedido da minha amiga Mônica para escrever um texto falando sobre a relação entre filhos com Down e a culpa religiosa. A Mônica é fundadora do Instituto Empathiae, uma organização sem fins lucrativos que presta apoio a pais de crianças com síndrome de Down. Embora eu a conheça há pouco tempo, experimentei em nosso encontro a nítida sensação de conhecê-la há muitos anos, dada a sintonia de espírito entre mim e ela. Pessoalmente, logo percebi, tanto no olhar quanto na fala, o comprometimento da Mônica com esse trabalho. Para além dos motivos particulares que umbilicalmente ligam essa causa a ela, é o coração dela que dá vida ao instituto, seu jeito de olhar a vida e o próximo. Vi na Mônica empatia e coragem, e essas coisas me fizeram tê-la em alta conta, crer no trabalho do instituto e tentar ajudar de alguma forma.
A vocês pais, falo também como pai. Tenho 31 anos, sou de São Paulo e moro em Portugal com a minha mulher. Crio dois filhos que, embora não tenham sido gerados pelo meu sangue, foram gerados pelo meu coração, que é o verdadeiro ventre, de modo que a mim não são estranhos nem os prazeres nem as dores, nem as alegrias nem as decepções de se ter filhos.
Quando a Mônica compartilhou comigo algumas histórias de culpa, muita culpa, meu coração se confrangeu. Pais de crianças com síndrome de Down que ouviram de líderes religiosos que seus filhos tinham vindo ao mundo com essa condição por causa de pecado e da falta de fé, e que por isso, Deus estava pesando a mão sobre eles, fazendo com que enxergassem os próprios filhos como uma maldição. Ora, a conta é simples: Se há convencimento de castigo divino, haverá impotência e raiva por parte dos pais; havendo impotência e raiva, a criança será recebida num seio familiar atravessado de vergonha, e estará bastante inclinada a desenvolver um sentimento de inadequação que jorra dos pais, pois os próprios pais sentem-se inadequados.
Casos assim, obviamente, dizem de famílias inseridas num contexto religioso, mas mesmo famílias sem nenhuma religião podem sofrer ao saberem da vinda de uma criança com alguma condição especial. Enquanto as primeiras lidam com o peso de um suposto castigo divino, tendo no céu o seu maior adversário, as outras lidam com o peso de uma suposta maldição genética, tendo como alvo de repugnância o próprio sangue. Sofrem tanto aquelas quanto essas, cada uma a seu modo. Ambas precisando de redenção.
Por que recebi com alegria o pedido da Monica para escrever um texto tratando desse imbróglio? Porque me vi diante da oportunidade de aliviar o fardo de muitas pessoas que, por mera falta de conhecimento, têm padecido numa luta ingrata, dando socos contra o ar. Pais cansados que não aguentam mais não o peso de um dia-a-dia trabalhoso, mas o peso de um coração que não pode descansar, pois não consegue entender uma insanidade.
A insanidade é esta: filhos que são como são porque são castigos divinos de um Deus caprichoso.
Se até hoje vocês olharam para a casa de vocês e interpretaram as dificuldades que existem nela como castigos de Deus, ataque da genética, maldição hereditária, e isso esteve até hoje marcado a ferro na pele da alma de cada um de vocês, saibam, a partir de hoje, que vocês podem entrar no descanso. Não no descanso de não termos mais aflições; não no descanso de não termos mais idas e idas ao psicólogo, ao fisioterapeuta, ao fonoaudiólogo, ao clínico; não no descanso de não termos que repetir a mesma coisa mais de uma vez a fim de que nossos filhos entendam. Não é desse descanso que eu falo, um descanso da vida, que só vem com a morte. Eu falo do descanso do coração, que vem da certeza de que somos amados independentemente do nosso desempenho como pais; eu falo do descanso da alma, que vem da confiança de que o Único que poderia fazer algo contra nós é justamente Aquele que está a nosso favor, agora e para sempre.
Descansem, queridos pais.
Abraço
de quem deseja que todos nós cresçamos em confiança.
Texto de Laion Monteiro